Sunday Maio 19, 2024
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Se crocodilo voa, também ouve. Numa Angola com mais chapas do que portas, tudo se sabe. O crocodilo soube que no gambito a Torre tinha regressado e havia de a fazer cair.

No “Tempo das Bessanganas” se canta assim, aquelas mulheres de corpos proeminentes, bem alimentados, vestidos de roda, colares de enrolar missangas não precisavam de quem lhes fosse buscar no musseque, punham e dispunham dos homens que perante elas se vergavam porque elas eram o feitiço e faziam-se disso.

O tempo das bessanganas não está assim tão longe daqueles cantados anos 70 e se Luiz Visconde orou e clamou para o carro de praça[2] o levar até ao seu amor, nestes últimos meses “a chuva que caiu aí na minha Luanda” só deu razão a Paulo Flores, pois que “a nossa independência está num balde”.

Naquele dia 27 o meu pai não tinha para onde fugir. Não podia colocar a família no lugar da desconfiança, desconfiava em que amigos confiar e sabia que aos inimigos não se poderia entregar. Restava-lhe a alternativa ser o adversário e assim foi bater à porta de um na altura conhecido militante da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Sobreviveu mais do que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) havia traçado que sobreviveria, não sobrevivendo ao MPLA, pois que ao MPLA, desde os tempos do maqui que está gravado: “diz-ninguém” sobreviverá.

A maka[3] toda começou assim:

Estávamos em finais de 2016 e José Eduardo dos Santos, a braços com uma Primeira-Dama descontente, que não deixava o sol entrar sem antes chochar[4] o quanto lhe enfadava a vida na Cidade Alta, que lhe fatigava o tempo do tempo e que queria ir mas’mbora, abandonou o poder pelo próprio pé. O dono do oxigénio cedeu e fez as vontades à Primeira-Dama, deixando o poder sem apagar a luz, não fosse João Lourenço tropeçar nos fios.

Já as suas mais-velhas o haviam convencido na intentona de deserdar de vez o filho varão com quem não partilhavam ADN. O outro, meia vida esquecido, também “se estava” (com as mãos no Fundo Soberano e o nariz sabe-se lá onde). Como diz o meu tio: – “Não peças nada ao lençol quando tens o cobertor” e José Eduardo dos Santos, mesmo que lhe fervesse a manta, teve de sair com ela e deixar Manuel Vicente, o lençol que criou toda a vida para vir a ser, ele sim, seu filho varão, o cobertor, destapado. E se há característica que os angolanos não deixam de reconhecer em José Eduardo dos Santos é que ele foi pai uma vida inteira. Nenhum outro foi tão papá e com tanto afinco defendeu o seu primogénito. Mas chegaria o dia em que o kakela[5] da Dona do Diaki[6] se fez ouvir mais-alto e venceu o pai pelo cansaço. A senhora queria a Sonangol e quando a galinha levanta a crista em Angola dikolombolo[7] se baixa. Manuel Vicente saiu pela porta dos fundos, a Sonangol foi tomada pela verdadeira, um outro varão apareceu com notas de crédito… Só faltava um sucessor para assinar de cruz e como a tarefa era de menos os Caluandas[8] do MPLA logo se lembraram: “Mas não tem ninguém de Benguela?” Com o pé que estava à mão, as mais-velhas empurram João Lourenço para o colo do velho pai e do ainda mais-velho, caquético mesmo, partido.

José Eduardo dos Santos preparava-se para mais uma visita particular pelas ramblas quando a esposa virou moma[9]. Bem muambada,[10] jiboiou: “Vai na frente e não esperes por mim”. Seria a primeira grande jogada da Dama do Gambito, mas não a última.

A maka continua já com José Eduardo dos Santos en las ramblas, sozinho em casa, em plena campanha eleitoral de João Lourenço, quando o crocodilo, imagine-se, deu o primeiro voo. Numa entrevista a um reputado jornal da terra dos irmãos de quem nunca foi pange etu[11] João Lourenço afirma que gostava de ser o Xi Jinping de Angola. Dos Santos não aguentou a passada e partiu rápida e sorrateiramente, ao seu bom estilo, para Luanda com uma única palavra de ordem para o partido: “- Eu é que sou o dono do conjunto, parem já essa kizomba[12].” Reúne os mais que mais-velhos, anuncia que vem nzaji[13], manda chamar o filho da boa muxima[14] e mais do que aconselhar, pressiona. A candidatura à presidência da república de João Lourenço tinha de ser imediatamente abortada, haviam escolhido o pássaro errado, aquele não era benjamim, antes crocodilo e dos que voavam. Manuel Vicente tinha de regressar e arrematar o quadro de cem milhões; o pai chorava o regresso do filho pródigo, mas o filho pródigo não voltaria, pois que afinal foi a ele a quem coube o manto de corrupto.

E se crocodilo voa, também ouve. Numa Angola com mais chapas do que portas, tudo se sabe. O crocodilo soube que no gambito a Torre tinha regressado e havia de a fazer cair.

O resto é desfortuna: um Presidente a abrir o peito aos marimbondos[15] – nem que morra gente, nem que falte sal – a expulsar as zungueiras[16] do n’ovo, a tirar o passaporte do kandengue[17], a governar com o Fundo Monetário Internacional, a espezinhar os kotas do M, a jogar sozinho por não ver rival à altura, a praticar ilusionismo num país puxado a gerador. Dia 15 de outubro o Comandante-em-Chefe João Lourenço fará um discurso sobre o Estado da Nação. A esta altura já deve ter contados os mortos (os que matou e os que colocou no corredor) e calculado com que vivos vai a jogo. Quem é do povo levanta a mão: tunda![18]

[1] Mulheres angolanas com poder social

[2] Taxi

[3]Confusão

[4] De dar chochos; produzir sons de desagrado por meio da língua

[5] Cacarejar

[6] Ovo

[7] Galo

[8] Naturais de Luanda

[9] Jiboia

[10] Que comeu uma boa muamba (prato tradicional de Angola)

[11] Nosso irmão

[12] Festa

[13] Tempestade

[14] Filho querido, do coração

[15] Ladrão

[16] Comerciantes de rua

[17] Miúdo

[18] Fora

FONTE: O PUBLICO

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