Friday Setembro 20, 2024
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O JULGAMENTO DO MORTO

Em vésperas das eleições, o principal tema de debate político-económico e sociocultural em Angola é a questão do morto.

Nesse espectáculo da morte há um consenso entre as forças vivas sobre a oportunidade soberana de se evitar, mais uma vez, o purgatório da discussão de ideias sobre o país e os angolanos.

Mas, para se entender a centralidade da morte na definição da política nacional e na exposição do verdadeiro ser e nível de elevação ou baixaria de uma família, basta um recuo de 30 anos, quando o escritor Manuel Ruipublicou Um Morto e os Vivos, cuja leitura é altamente recomendável.

Trata-se de uma sátira mordaz sobre o poder em Angola, que é desnudado na hora da morte de um dos seus ilustres detentores, com todos os seus paradoxos, os esquemas de corrupção, a disfuncionalidade da administração do Estado e a ausência do sentido colectivo de Estado.

“Todos nós sabemos das dificuldades que o partido e o Estado enfrentam no que concerne à indústria funerária” – assim discursa um governante no funeral do morto, ora reconhecido apenas pelos favores que distribuiu entre tantos. Na hora do seu enterro, o morto vê-se coberto e desonrado pela hipocrisia dos seus pares, pela humilhação causada pelo comportamento da sua família e pelo modo como a cidade se entretém com mujimbos em torno da sua morte.

Indignado, o morto levanta-se na hora do discurso oficial, para protestar contra tudo e todos, causando grande pânico entre a nomenklatura presente. No meio dessa confusão e da barulheira antigovernamental que se gerou pelo país por causa do indignado ressuscitamento, o morto é imediatamente detido e levado a julgamento.

O julgamento do morto anima a faladeira, ou faladura, musculada pró e anti, como anotaria o escritor, dos órgãos de comunicação social e da boca do povo.

Durante a audiência, o juiz refere que o morto se insurgiu “contra o funeral pomposo e dispendioso e não tendo morrido se simulou de tal, levantou-se do caixão dentro do cemitério, tudo em premeditada intenção de agitar as massas populares em favor de insuspeitos desígnios de desestabilização, isto é, de crime de rebelião”.

Picante, o juiz de Manuel Rui pergunta então ao morto se este tem consciência do crime por si cometido. Ao que o réu responde: “Não tenho consciência porque morri.”

“Não se recorda de um funeral oficialmente organizado e que o réu de intenção resolveu sabotar, pondo em risco o prestígio das entidades competentes envolvidas, a segurança dos responsáveis e engendrando um clima de pré-rebelião, tudo previsto e punido pela lei em vigor?”, questiona o juiz. “Quem se deve recordar disso é o senhor. Que está vivo”, retruca o morto.

O morto é condenado ao fuzilamento. Mas acaba por ser amnistiado, por falta de condições para a execução da pena.

Um dos mujimbas do povo contribuiu também com o seu veredicto: “Verdadeiramente, a amnistia é só para confirmar a morte” do morto.

Enquanto isso, o óbito do morto representa alegoricamente o ecossistema da administração do Estado, que não funciona para o bem comum mas se reveste de extraordinários esquemas ad hoc, aqui servindo para promover comeretes e beberetes na hora da morte de alguém importante.

Um Morto e os Vivos retrata um dos paradoxos vividos em Angola numa época de guerra, devastação do país e miséria absoluta. Na capital do país, havia o famoso contrato de limpeza, em que as artérias da cidade eram varridas e o lixo recolhido por cidadãos filipinos, incluindo no então centro do poder, o Futungo de Belas. Quem comparece no óbito beneficia do “direito exclusivo” de ter na casa do morto os filipinos a recolher-lhes o lixo. O óbito também serve para revelar o assalto ao poder por um desconhecido, para revelar a organização impecável do komba do morto e as mais altas expressões de estratificação e discriminação social, assim como os ares desbragados dos VIP de então.

A família do morto, por sua vez, aproveita-se das benesses do Estado para transformar o óbito numa boîte ao serviço da elite.

Agora o morto saiu das páginas da literatura para a vida real, e o surrealismo é ainda mais abundante do que na ficção.

O morto responsável pela situação a que o país chegou tornou-se o símbolo daqueles que querem instituir mudanças. O morto é a situação e a mudança. Qual milagreiro que está no princípio e no fim. Querem que o morto viva e altere o que fez antes. Não há programa político, não há ideias sólidas – apenas uma rebelião em que o povo aproveita a morte do ex-ditador para exigir mudanças por via de mujimbos. Mudanças essas que, infelizmente e inexplicavelmente, os poderes vivos deste país não conseguem articular com nexo e sentido mínimo de Estado.

Aqueles que esperam pelos milagres da ressurreição deveriam antes olhar para si próprios e ver em vida o que podem fazer pela vida. Deveriam deixar de contar com mortos e outras forças do além ou do aquém e, em vez disso, agir eles próprios pelo bem comum do país. Desde logo, contribuindo para construir um Estado credível com instituições fortes, abandonando as disputas pessoais e abraçando o debate em torno de ideias e políticas.

Quanto ao morto, ninguém esperaria que a figura que, para o bem e para o mal, mais marcou a vida dos angolanos no período pós-independência acabasse por ter o seu corpo disputado em praça pública, sem nenhum do decoro que é devido aos mortos, por um membro da sua prole.

No fim, a sentença sobre a sua inglória provém da própria família. Ao contrário do que acontece no livro de Manuel Rui, não é o aparato judicial que julga o morto, mas sim a própria filha, que publicamente torna óbvio tudo o que o morto fez e não fez. Na verdade, a sua herança é um Estado morto à mercê das disputas individuais mesquinhas e pasto para saques bilionários. Não há ressurreição que resista a estas trevas terrenas. Paz eterna ao morto.

Fonte: makaangola.org

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