MANUEL HOMEM: VOLTA A HUMILHAR TRAJETÓRIA DO EX .MINISTRO DO INTERIOR.
MIHAELA WEBBA ESCREVEU: BENEFÍCIOS DE UMA AUDITORIA DO SOBERANO AOS ACTOS DA CNE
Pretendo demonstrar neste artigo que, tendo a Comissão Nacional Eleitoral, na condução do processo eleitoral, saído dos marcos da legalidade, da transparência e da prossecução do interesse do soberano, incumbe ao Tribunal Constitucional recorrer a um direito suprapositivo para afirmar a soberania do soberano e realizar a justiça material em Angola.
Angola não é ainda uma democracia plena e a República constituída em 1992 ainda não funciona como um Estado de direito. Porém, a vontade do povo angolano, a democracia participativa, a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, são os fundamentos constitucionais da República de Angola. Com base neles, após convocação, o soberano exerceu a soberania através do sufrágio universal livre, secreto e directo. O sufrágio foi organizado pela Comissão Nacional Eleitoral e deve ser validado, em última instância, pelo Tribunal Constitucional.
Uma boa parte do soberano contesta a imparcialidade da CNE na organização e condução das eleições. Contesta, inclusive, a conformidade dos seus actos à Constituição e à lei. De facto, a CNE minou a verdade eleitoral quando, em 4 de Agosto, respondendo a uma reclamação apresentada pelo mandatário de uma das candidaturas, por via do seu Ofício 452/GAB.PR/CNE/2022, de 4 de Agosto, afirmou que “a CNE, oportunamente, entregou a lista dos cadernos eleitorais em suporte digital aos mandatários dos diferentes partidos concorrentes, bem como através da sua publicação no site da CNE, factos ocorridos antes do 30.º dia da data marcada para as eleições gerais, nos termos do que dispõe o número 2 do artigo 87.º da LOEG, com a alteração do artigo 1, da Lei n.º 30/21”. Infelizmente, tal não é verdadeiro, pois a CNE entregou aos mandatários o mapeamento eleitoral, previsto no número 2 do artigo 87.ª da LOEG, e não a “lista de eleitores por mesa de voto”, como lhe ordena o número 5 do artigo 86.º da LOEG. Todos os mandatários são testemunhas.
A CNE afirmou também no mesmo ofício de 4 de Agosto que “o modelo de acta das assembleias de voto foi aprovado pelo Plenário da CNE…e poderá a todo o tempo ser consultado”. A verdade é que tal modelo só foi publicado no dia 16 de Agosto, no DR I Série n.º 155, portanto, uma semana antes da eleição. E mais: foi aprovado e publicado em dupla violação da lei: primeiro, porque a acta não inclui o campo para inclusão do número de votantes, um campo de preenchimento obrigatório imposto pela alínea c) do número 2 do artigo 123.º e pelo número 8 do artigo 86.º, ambos da LOEG. Segundo, porque foi publicado bem fora do prazo estabelecido pelo artigo 5.º da LOEG, que, em defesa dos princípios da previsibilidade, da boa fé, da transparência e da utilidade pública, proíbe a CNE de organizar as eleições com base em legislação não vigente à data da sua convocação.
Além disso, é já facto notório que a CNE produziu actas com o mesmo número ou código de identificação para realidades diferentes. Por exemplo, foi constituída na Aldeia da Santana, Município do Dande, província do Bengo, a assembleia de voto número 3767, com duas mesas de voto. Os eleitores inscritos para votar nesta assembleia estão identificados na página de internet da CNE em https://www.cne.ao/eleitorylistglobal/04-Bengo/3767.pdf.
Da votação ocorrida nesta assembleia, a acta revela que o PHA obteve 4 e 4 votos nas respectivas mesas, a FNLA obteve 2 e 4 votos, o PRS obteve 7 e 4 votos, o MPLA obteve 144 e 155 votos e a UNITA obteve 177 e 179 votos, respectivamente. Porém, segundo a acta na posse de várias candidaturas, a CNE constituiu uma outra assembleia de voto com o mesmo número 3767. Terá funcionado com três mesas de voto, na Aldeia do Quitonhe, Município do Dande, província do Bengo. Aí, a acta revela que o PHA obteve 5, 3 e 3 votos nas respectivas mesas, a FNLA obteve 1, 2 e 2 votos, o PRS obteve 2, 2 e 2 votos, o MPLA obteve 202, 221 e 198 votos e a UNITA obteve 109, 86 e 98 votos, respectivamente. O número de votos válidos nessa assembleia difere da original e os nomes dos eleitores que terão votado nessas três mesas não constam das listas dos eleitores publicados tardiamente na página da internet da CNE.
Haverá certamente casos similares pelo país afora, que precisam de investigação pontual para se apurar a verdade eleitoral.Na verdade, a fé pública dos cidadãos na CNE é quase nula, porque não confiam na sua integridade moral e cívica, nem na sua competência profissional e muito menos na sua independência funcional ou institucional.
Não integrando a Comissão Nacional Eleitoral a administração directa e indirecta do Estado e não tendo, na sua estrutura, órgãos próprios de fiscalização, incumbe ao Tribunal Constitucional assegurar, em nome do soberano, e no exercício da sua soberania, a fiscalização dos actos e das eventuais omissões do Plenário da CNE. Um dos veículos que o soberano pode utilizar nesta fiscalização é a auditoria. Sua necessidade impõe-se, face aos factos notórios associados à prática reiterada do incumprimento da lei pela CNE, em especial a reiterada não publicação dos resultados eleitorais por mesa de voto, que é a unidade de apuramento dos resultados, estabelecida por lei e cuja divulgação constitui prática internacional das administrações eleitorais no mundo democrático.
A competência do TC para ordenar a publicação das actas por mesa e por assembleia de voto e uma auditoria aos actos de apuramento nacional, advém directamente da Constituição, cabendo-lhe um papel especial nas decisões com incidência constitucional.
Face às características do Tribunal Constitucional, no conjunto dos órgãos do poder do Estado, este não actua como um mero poder judicial, mas, ao invés, investido de plenos poderes de soberania. Daí, decretar sempre “em nome do Povo”, o soberano!
É o exercício dessa soberania, pelo soberano, que está em causa. Logo, “em nome do povo”, o TC pode ordenar, em nome do povo soberano que vê beliscado exercício da sua soberania, uma fiscalização pontual e circunscrita aos actos do administrador eleitoral, um órgão cuja conduta nem sempre se tem pautado pela absoluta obediência à Constituição e à lei.
O âmbito e a duração da auditoria podem ser acordados com o servidor público Comissão Nacional Eleitoral, podendo nela participar um ou mais Partidos concorrentes ou reclamantes e quiçá outras instituições representativas do pluralismo de expressão e de organização política dos cidadãos, com base nos artigos 2.º, 3.º, n.º 1, 11.º, n.º 1 e 2, 17.º, n.º 3, 53.º, n.º 1, 54.º, 56.º e 73.º., todos da CRA.
A auditoria do soberano aos actos de apuramento nacional dos resultados encerra um conjunto de procedimentos técnicos de revisão e de certificação de operações quantitativas, sujeitas a erros e omissões, que não foram objecto de controlo nem de revisão independentes. A auditoria é específica e pontual, diferente da auditoria técnica organizada pela CNE com base no artigo 116.º da LOEG. Ela também não conflitua nem é dispensada pelos actos fiscalizadores dos mandatários dos partidos concorrentes, que, nos termos do artigo 118.º da LOEG, podem exercer o direito de “assistir a todas as actividades de apuramento e de escrutínio”, direito esse que, na prática, foi coartado pelo Regulamento Sobre a Organização e Funcionamento do Centro de Escrutínio, que a CNE também publicou no dia 16 de Agosto de 2022, à margem da lei.
A auditoria do soberano ajudará certamente na resolução justa e pacífica do contencioso eleitoral, constituindo um instrumento insubstituível para a validação da eleição e para a consequente legitimação do poder político. Constitui também um pilar fundamental na construção da paz política e social, que o País precisa para avançar para as tarefas das reformas do Estado e do desenvolvimento humano. O seu maior benefício é, sem dúvida alguma, o fortalecimento da fé pública no processo eleitoral, altamente inquinado, confirmando que, no plano prático, os procedimentos e cálculos auditáveis relativos ao apuramento dos resultados e executados pelo ente público Comissão Nacional Eleitoral, estão correctos, subordinam-se à Constituição e fundam-se na legalidade.
A auditoria do soberano constitui também um valioso contributo para a afirmação da soberania do Tribunal Constitucional e para a consolidação do Estado de Direito. De facto, do princípio estruturante do estado de direito, cujo traço essencial reside na limitação jurídica do poder, decorre que o TC é o órgão que assegura a força normativa da Constituição, a protecção, a garantia e o controlo da constitucionalidade, em prossecução do interesse público. E, porque o TC prossegue um interesse público, não está limitado aos marcos da legalidade. Pelo contrário, procura o respeito pelos direitos fundamentais e a concretização da democracia e da lei na ideia de justiça subjacente a um direito suprapositivo, o que já não acontece com os órgãos da administração do Estado, sujeitos que estão na sua actuação ao princípio da legalidade.
O interesse público subjacente à força constitucional dos direitos fundamentais do soberano e à sua natureza de “trunfos” do Estado de Direito, como advoga a doutrina constitucional moderna, recomenda uma intervenção mais assertiva e ousada do soberano, através do seu Tribunal Constitucional, não como simples órgão do poder judicial constituído, mas como efectivo órgão de soberania incumbido pelo legislador constituinte de exercer a soberania em nome do povo, o soberano votante e único titular do poder constituinte.
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