Friday Março 29, 2024
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ROMARIA EM BUSCA DE BÊNÇÃO NO CEMITÉRIO DOS REIS

A entrada para o cemitério dos reis decorre em silêncio: descalços dezenas de sobas e regedores, uma oferta em dinheiro é colocada numbalaio, no espaço entre o portão e zona das campas, onde a seriedade de um casal de leões em betão emite, à primeira vista, um aviso de cautela ao visitante.

Ajoelhados, com as mãos apoiadas no chão, os participantes descem ao tronco e  erguem os braços e batem palmas, como alguém que pede permissão de acesso em casa alheia. O recolhimento individual anuncia a fase de introspecção.

A submissão ilustra o endeusamento dos ancestrais para, supostamente, “obtermos bênção nas colheitas, fecundidade nas famílias e protecção contra o mal”, como referiu o soba do bairro Carteira, Francisco Yenu José,  junto ao muro de vedação, pintado em branco.

Concluída a exaustiva sessão de homenagem aos nobres que desfrutam o descanso eterno no campo santo, os participantes saem do local sem pressa, calçam os sapatos deixados à entrada. Para o regedor de Naxili, da província da Lunda-Norte, Alberto Caxela Cadrela “os reis vão resolver os problemas da população, apresentados durante o ritual, que traduz parte da nossa identidade”.

Cadrela enquadra a terceira comemoração do ano cokwe, no reinado do soberano Lucassa João, nos esforços de resgate de valores da cultura.

 A festa do Camoxi  é um momento especial para render homenagem aos ancestrais a fim de  garantirem paz e prosperidade. O seu homólogo de Cambinza, na mesma província, lembra que o dia  31 de Agosto na tradição Lunda Cokwe assinala o fim de ano, definido  no calendário gregoriano pelo mês de Dezembro. Prosseguiu que o dia um de Setembro, conhecido na contagem tradicional dos meses por Camoxi, é o início do ano novo, que no calendário Gregoriano começa a um de Janeiro.

Chicalo Yambo Paulino acredita que, com o ritual realizado, os ancestrais no além, protegem as populações contra as “pandemias, infertilidade, garantir colheitas promissoras e outras bênçãos, em retribuição à honra dada por nós que ficamos”.

Impressionada pela positiva com o que viu na sua primeira participação o evento  ao soba Mutonga, em Chitato, província da Lunda-Norte, Antonica Sodré gabou a riqueza da cultura cokwe. Volta para a sua área de jurisdição reconfortada pela experiência, sobretudo no cemitério, onde  “senti o corpo arrepiado.”

O historiador João Baptista Manassa, designa a festa do início do ano cokwe, por Combe. O facto de as chuvas iniciarem, geralmente, em Setembro e engajarem as comunidades no cultivo dos campos para colherem alimentos, enquadra a definição do primeiro dia de Setembro (Camoxi), assinalar o início do ano novo.

Palhaço e outros rituais

O aparecimento do palhaço vestido de branco caminhando equilibrado sobre andas de bambu atrai olhares curiosos. A figura de aproximadamente seis metros de altura dá passos de gigante, dança sobre as andas. Com as mãos gesticulando abre alas para dar passagem ao Rei, que desfila em roupa de gala, sentado numa tipóia transportada por jovens robustos.

Baixada a tipoia, o soberano desce e junto de uma árvore preside um  ritual segurando balaios com vários produtos do campo enquanto o soberano implora aos antepassados, num sussurro praticamente imperceptível, sob vigilância atenta de palhaços como Txucuza, de catana em punho ameaça quem tentar violar o cordão de segurança.

Esta fase termina com a tortura impiedosa de um cabrito amarrado próximo do local onde o rei  sussurra algumas palavras aos antepassados, implorando prosperidade para as populações e protecção contra todo o mal, ouvido em silêncio pelos acompanhantes.

 O ritual culmina com a saída lenta de torre miniatura em formato de cone, executada com ramos flexíveis, ajustados por cordas. A sua  movimentação exige sincronia de esforços e equilíbrio por parte dos que suportam o peso  para manter vertical a estrutura.

Através de dois furos abertos à medida dos olhos, no pano branco que envolve o artefacto,  no interior do qual, o guia confirma o percurso, auxiliado na parte exterior por um outro. Da equipa que move o artefacto um tem a missão de emitir baforadas de fumo que escapa de forma intermitente no topo afunilado. O peso da peça artesanal desponta na lentidão com que é movimentada.

Num outro momento, acomodado numa cadeira especial, ao lado da esposa,  num compartimento em forma de barraca rural, o rei é  homenageado individualmente por sobas e regedores participantes na cerimónia.  A homenagem termina com a deposição de um valor em dinheiro no balaio, seguido de uma vênia para a saída do local.

De catana em punho e correndo ameaçador de um lado para o outro para repelir a multidão, o Txicuza, um palhaço que ostenta sobre a cabeça uma máscara alongada pintada em preto,  listras finas branco e vários adornos avermelhados em formato de crista, impõe a ordem.

Enquanto o Txicuza garante a ordem, o seu homólogo sobre andas de bambu, dá passos gigantes ostentando a sua respeitável altura de pelo menos seis metros, medidos a partir do capuz alongado sobre a cabeça, cobre o rosto. A marcha equilibrada em simultâneo com a dança reputa o traquejo na arte e deixa de boca aberta o incrédulo.

O show de cultura com vários atractivos embala a plateia, sob a batucada harmoniosa de batuques, correspondida com o gingar erótico da Txianda que arrebata a timidez dos executantes.

A festa da abertura do ano tradicional culmina com um almoço para todos os convidados obedecendo um critério de organização definido e posterior regresso dos convivas às respectivas áreas de jurisdição.

Fonte: Jornal de Angola

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